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:: 16 Fevereiro 2015
A Editorial Caminho publica o texto, da autoria de Helena Roseta, que foi lido na cerimónia de apresentação do livro Meu Pai, o General Sem Medo. Memórias de Iva Delgado.

Apresentação do livro

“Meu Pai, o General Sem Medo” de Iva Delgado

Cinema S. Jorge, 13 de fevereiro de 2015

 

Helena Roseta

 

Quando Iva Delgado me telefonou a convidar-me para apresentar hoje aqui o seu livro, confesso que fiquei bastante aflita. Não tenho quaisquer pergaminhos como escritora ou investigadora e a relação de afecto e admiração que sempre nutri pela Iva nunca chegou a ser uma relação de grande proximidade. E no entanto um convite destes era irrecusável. Por isso estou aqui como leitora, como mulher, como cidadã, a procurar transmitir-vos um apelo simples – estamos diante de um livro que se lê de um só fôlego e nos restitui, não só memórias que são “património pessoal” da autora, mas também as nossas próprias memórias sobre um tempo e uma figura que marcou a história de Portugal.

Iva Delgado é uma grande contadora de histórias e esse é uma dos maiores atractivos deste livro. Histórias que podem surgir de qualquer referência banal mas que ela consegue transformar em verdadeiros episódios, ora divertidos ora pungentes, mas sempre profundamente humanos ou mesmo afectivos. Como o caso do velho leitor de textos medievais, que costumava encontrar na Torre do Tombo, em 1997, e cuja falta na mesa habitual a autora estranha, até que se dá conta, ao sair, que ele acabara de ser atropelado. Iva aproxima-se do homem ensanguentado estendido no chão e fala com ele “para o manter vivo”, explica-lhe o que lhe sucedeu, acompanha a ambulância até ao hospital, enquanto lhe ocorre que “estou a correr atrás de alguém que não sei quem é. Penso que ninguém sabe que este homem está à beira de morrer, ninguém sabe quem ele é, quando me perguntarem o nome não saberei dizer nada, quando me perguntarem o que sou a ele, terei de dizer que me costumo sentar numa mesa e ele noutra mas nunca falámos um com o outro, terei de mentir, que não me lembro do nome, até que respiro de alívio, claro, ele tem a documentação no casaco, não me farão perguntas dessas.” Dias mais tarde Iva regressa ao hospital para visitar o “leitor da mesa número um”, que lhe agradeceu o que tinha feito. E a autora remata: “Protestei, nada fizera, nada. Vi que queria contestar, voltar a agradecer. Cortei-lhe a palavra: «Francamente, acha que era preciso este aparato todo só para me conhecer.»

 

 

Há uma espécie de grande delicadeza que atravessa o livro todo. Mesmo quando recorda os momentos terríveis da ausência e depois do assassinato de Humberto Delgado – esse drama que dilacerou a sua vida e a nossa história - Iva fá-lo com discrição e contenção, deixando-nos, enxuto de todas as lágrimas, um retrato muito humano e desempenado do General sem medo, seu pai. 

O livro atravessa as memórias de uma infância feliz, numa família em que a figura de Humberto Delgado se impõe com um misto de autoridade e ternura, enchendo de orgulho a pequena Iva quando a levava diariamente, mão na mão, no que chamavam “o passeio da honra” – que é aliás o título da primeira parte do livro. Para sempre associada aos cheiros e sons dessa casa de infância ficará a avó materna, Maria Luísa, que cheirava “a pó-de-talco e a água de colónia de alfazema, produtos comprados a peso na drogaria da esquina”, à mãe Maria Iva, que “cheirava a baton e a perfume e tinha anéis e pulseiras que eu gostava de fazer tilintar”. Percebemos a coqueteria de Maria Iva, jeito que até ao fim seria uma das preocupações de Humberto Delgado, preocupado com a linha e com os produtos de beleza da mulher, a quem mesmo do exílio e por entre cartas muitas vezes interceptadas pela PIDE conseguia mandar “brilhantina negra” para tapar os cabelos brancos, deixando um conselho: “É preciso ter muito cuidado com coisas de cores na cara e na pele (…) pois já tenho visto senhoras com a cara toda esborratada.”  

Durante a Segunda Guerra, Humberto Delgado, anglófilo, andava em viagens semi-secretas a Londres e aos Açores, por causa da preparação da Base das Lajes de que foi protagonista. Missão perigosa, que prolongava na memória da família outros feitos de outras guerras, como as vividas pelo avô Joaquim, herói das trincheiras na Flandres. “Todas as gerações, lembra a autora, pareciam ter uma guerra à medida do seu tempo.” Tempo que em Lisboa parecia parado, como ela nos recorda, ao descrever a capital por essa altura:

 “Era a Lisboa dos anos quarenta, dos eléctricos chiando pelas calhas, que levavam cachos humanos pendurados. Já não se escrevia Rossio com c. Os homens de Caneças vendiam água em bilhas de barro. As vendedeiras gritavam a plenos pulmões: «Quem quer figos quem quer almoçar.» O ferro-velho andava de porta em porta. O moço de fretes, com a corda enrolada ao ombro, transportava tudo às costas. As trapeiras levavam trapos e jornais velhos. Os burros carregados de hortaliça juntavam-se às portas das praças enchendo a capital de ruído saloio. Os pedintes eram muitos. As crianças brincavam nas placas centrais, não havia automóveis a atravancarem o local de brincadeira. Jogava-se ao mata, ao berlinde, às cinco pedrinhas, saltava-se à corda. (…) Lisboa saía lentamente de capital de província, a guerra vinha alterar o leitmotiv urbano, conferindo-lhe um mito próprio de oásis no meio da devastação, de santuário de judeus refugiados a caminho da América. As estrangeiras fumavam nos cafés.

Havia reis sem trono, magnates sem dinheiro, príncipes sem futuro e espiões de todas as marcas. Mas nas ruas de Lisboa talvez se falasse mais do preço da couve lombarda, da estreia do Pai Tirano e do João Ratão de Jorge Brum do Canto do que dos avanços de Timochenko na frente russa. A exposição do Mundo Português, com a sua componente exótica, ultramarina, alheia à guerra, exibia a nossa história e as nossas conquistas. Portugal escapava à guerra.”

Iva tinha cinco anos quando a guerra acabou, mas já nessa altura fazia cuidadosamente recortes de jornais para o pai, que mantinha dossiês de imprensa não só sobre as operações militares mas também sobre a aviação – uma das suas paixões. “A mim competia-me recortar, recorda Iva, não tinha idade para ler. Mas fazia perguntas. E sabia que tinham de ganhar os ingleses e americanos.” E embora a palavra nazi fizesse parte do vocabulário familiar, Iva confessa que foi quase só no final da adolescência que compreendeu o que fora verdadeiramente a Segunda Guerra Mundial – nessa altura já acompanhava as discussões à mesa e compreendia o que Humberto Delgado, um militar brilhante, queria dizer quando afirmava que “a obediência cega reduz o homem ao estado animal”.

É contudo na Quinta da Cela Velha que estão as raízes mais profundas de Iva Delgado. “Era mais forte em mim – sempre foi pela vida fora – o sentimento de pertença à quinta do que à casa de Lisboa, da rua Filipe Folque”. As gentes da terra são como família, a quem se juntam os parentes antigos, os mitos e os segredos. Uma antepassada, a tia Eduarda Andrade, a “senhora da quinta” como ficou conhecida, marcou os tempos do fontismo, cedendo terrenos para o caminho de ferro e para a estrada que iria passar pelo portão. E é com personagens da Cela Velha que nos comovemos, quando a autora nos relata episódios como o do Zé Nobre, que não se cansava de contar os voos rasantes do “malandro do seu paizinho” para lhe arrancar o barrete da cabeça. “Se eu não me agachasse nem sei o que seria de mim.”

É também na Cela Velha que se passa mais um episódio revelador do espírito empreendedor e aberto de Humberto Delgado, na altura “senhor coronel” – um acordo, por ele promovido, com os agricultores desesperados pela falta de água. As reuniões faziam-se na casa de jantar, com todos à volta da mesa. Delgado acabou por interceder junto do governo de Salazar e conseguir a instalação de um sistema moderno de bombagem e rega.

A ida para o Canadá, em 1948, marca uma nova etapa na vida familiar. É na chegada a Halifax (de barco, pois Maria Iva tinha medo de aviões) que Iva sofre uma primeira epifania: “Apercebi-me turvamente das diferenças de classe quando começaram a emergir levas de pessoas saídas dos porões do navio. As roupas cheiravam a podre e as fisionomias translúcidas lembravam pele de osga.” No novo país tudo era diferente: as casas aquecidas, os homens a ocupar-se de tarefas domésticas, para espanto da criada Joaquina, uma nova língua, outros hábitos de consumo, de alimentação e de diversão.

O relato de uma visita a casa de uns vizinhos, a família Colbeck, espelha o choque cultural entre os portugueses acabados de chegar e os canadianos: “O abismo tornou-se patente assim que meu pai bateu à porta. Ouviram-se gritos e correrias. Pela porta de rede presenciámos o filme do lado de lá. A família estava sem roupa e como ninguém tinha por hábito arrumar fosse o que fosse, andavam meio loucos a espreitar debaixo dos móveis”.

Em 1952 a família Delgado passa a viver nos Estados Unidos. Como diz a autora, “o ambiente familiar era o mesmo, suficientemente coeso para me sentir em casa onde que que estivesse. Meu pai era o comandante do avião, o próprio avião e a atmosfera que nos cercava (…). De minha mãe vinha a estrutura do quotidiano que tornava tudo familiar e cordato.” Este papel de Maria Iva é confirmado numa das cartas de Delgado à filha, muitos anos mais tarde. Referindo-se à mulher, Delgado escreve: “Ela não foi feita para lutar, foi feita para dar conforto aos que estão à sua volta.” Iva dedica aliás um capítulo inteiro deste livro às memórias de sua mãe, relatadas na primeira pessoa e que, como escreve, “muito raramente diziam respeito à vida política do meu pai. O grande momento de viragem que foi a sua candidatura à Presidência em 1958, representou para ela um início de calvário que teria o seu ponto culminante no assassínio e tudo o que se lhe seguiu, deixando-lhe feridas abertas para sempre.”

Iva regressa a Lisboa e vai para o Liceu Maria Amália. É aí que diz ter compreendido finalmente o que era uma ditadura. Foi através de um caso passado com a sua melhor amiga. Estudavam juntas e tinham as mesmas notas. Um dia, numa prova escrita de português, Iva vê na pauta um 14 à frente do seu nome e um inexplicável 9 para a amiga. Revoltada, tenta barafustar quando a amiga lhe diz em voz sumida “Era de esperar – sabes, eles não perdoam.” Aflita, Iva tenta perceber: “Não perdoam o quê?”. Puxando-lhe por uma manga e de modo a que ninguém as ouvisse a amiga responde: “Tu sabes que eu tinha dispensa das aulas de moral…” e, num gesto “de resignação e revolta” pede-lhe silêncio. Iva confessa que foi ali que sentiu o “vago medo: O medo de estar com ela ali perto do liceu onde forças invisíveis controlavam as nossas vidas.”

O medo. Eis uma palavra recorrente no livro, como sentimento confessado pela autora. Palavra que para mim, que a conheço das lides públicas, não cola nem com ela nem com os seus combates - mas que afinal, a ser sincera, apenas vem dar mais valor ao seu exemplar percurso de vida cívica e política.

A segunda parte do livro intitula-se “Obviamento recordo-o” e traça as etapas que estão gravadas na nossa memória colectiva – a conferência de imprensa no Chave d’Ouro, a campanha presidencial de 1958, o exílio, o criminoso assassínio. Pelo meio, novos episódios, picarescos ou não, nos prendem à narrativa: desde as bizarrias do elevador da casa da Filipe Folque quando transportava os conjurados, ao diálogo, muitos anos mais tarde, com o jornalista que colocou a questão histórica no Chave d’Ouro:

“Senhor general, quais são as suas intenções, caso ganhe as eleições, em relação ao senhor Presidente do Conselho?”. “A resposta ficou célebre, a pergunta também”, diz-lhe nesse diálogo Lindorf Pinto Basto, já doente e em cadeira de rodas, que prossegue: “Quanto ao autor da pergunta, ficou no limbo a que são votados os jornalistas quando não são mortos em serviço.” A menos, acrescento agora eu, que sejam resgatados por aqueles que se impõem como missão “cuidar da sua memória”.

É com este imperativo – “Cuida da tua memória” – que Iva Delgado encerra o livro, não sem antes nos ter comovido com o episódio do telefonema do “Sr. Silva” – que o próprio General Sem Medo, disfarçado e clandestino em Portugal, fez de uma cabine telefónica para casa, já perto do seu trágico final. Para trás ficariam o cataclismo eleitoral de 1958, a revolta de Beja, o exílio. Para trás ficaria também uma família que não se conformou com o julgamento de 1981, que branqueou as responsabilidades do ditador e da PIDE no brutal assassínio.

“Cuida da tua memória” – o conselho de João Palma Ferreira a Iva Delgado é no fundo um apelo dirigido a todos nós. Nestes tempos de nova barbárie, eivados de ignorância, esquecimento e perversões de toda a espécie, a começar pelas perversões da língua, eis na voz de Palma Ferreira uma verdadeira palavra de ordem para a sobrevivência da nossa identidade, da nossa história e da nossa civilização. Iva Delgado cumpriu a sua parte e teve a generosidade de a pôr à nossa disposição. Não deixemos, cada um de nós, de fazer o que nos cabe – cuidando da memória do General Humberto Delgado, o herói português que ousou desafiar o tirano e levantar um povo em nome da Liberdade.